Inédita simulação computacional em escala atômica aponta alvos com potencial para desenvolvimento de novas terapias
Uma pesquisa com base em metodologias computacionais de ponta conseguiu avançar na compreensão de uma das etapas centrais envolvidas na infecção das células humanas pelo parasito Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas.
Construindo um modelo inédito de moléculas envolvidas nesse processo, com mapeamento de 1,44 milhão de átomos, o estudo identificou alvos que podem ser o ponto de partida para o desenvolvimento de novas terapias.
Publicado na revista científica internacional ‘Biochemistry’ [1], com destaque na capa da publicação, o achado é fruto da colaboração do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), através do Programa de Pós-graduação em Biologia Computacional e Sistemas, com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade de Auburn, nos Estados Unidos.
Ilustração na capa da revista 'Biochemistry' [2] mostra um barbeiro sobre a pele e, abaixo, o modelo computacional desenvolvido por pesquisadores da Fiocruz, UFRJ e Universidade de Auburn que apresenta a interação entre moléculas do Trypanosoma cruzi e da célula humana. Imagem: Biochemistry/ACS Publications
Modelo completo
A investigação colocou em foco duas moléculas: a proteína gp82, presente na superfície do T. cruzi, e a proteína LAMP2, encontrada na membrana das células humanas. Durante a infecção, a ligação entre estas proteínas permite que o parasito consiga invadir as células de diferentes órgãos humanos.
Os cientistas destacam que o trabalho construiu o primeiro modelo computacional completo do complexo formado por gp82 e LAMP2 com resolução atômica, ou seja, representando cada átomo das moléculas envolvidas no sistema.
“Utilizamos simulações de dinâmica molecular em escala de microssegundos, em um sistema com 1,44 milhão de átomos, incluindo as duas proteínas, as membranas dos dois organismos e outras moléculas que interferem nessa interação, como os glicanos. Isso nos permitiu investigar, com precisão sem precedentes, como essas moléculas interagem no ambiente biológico", detalha Raíssa Rosa, doutora em Biologia Computacional e Sistemas pelo IOC.
Ilustração adaptada do artigo 'Atomistic insights into gp82 binding: a microsecond, million-atom exploration of Trypanosoma cruzi host-cell invasion'. Arte: Jefferson Mendes
Entre os principais resultados, a análise mapeou os segmentos das proteínas com papel mais importante para estabelecimento da ligação entre gp82 e LAMP2, corroborando e ampliando achados de ensaios experimentais.
“Só existiam dois artigos anteriores que tinham identificado resíduos críticos para essa interação a partir de experimentos de bancada. Na simulação computacional, demonstramos a relevância destes resíduos já identificados e apontamos outros que ainda não tinham sido descritos. O alinhamento com ensaios experimentais reforça a validade do modelo desenvolvido, que pode ser explorado em outras pesquisas no futuro”, afirma Manuela Leal da Silva, docente da Pós-graduação em Biologia Computacional e Sistemas e orientadora de Raíssa.
Os achados abrem portas para buscar moléculas capazes de atuar em pontos-chave da interação gp82-LAMP2, de forma a impedir a invasão celular pelo parasito, o que pode ser a base para novos tratamentos ou vacinas.
“O desenvolvimento de terapias é sempre um processo longo e custoso, que se torna ainda mais difícil para doenças negligenciadas. O trabalho computacional pode encurtar esse processo direcionando a busca de biofármacos. Ainda assim é fundamental que existam investimentos, porque é preciso passar por diversas etapas de testes até fazer com que uma terapia chegue efetivamente aos pacientes”, declara Rafael Bernardi, pesquisador da Universidade de Auburn, que atuou como supervisor de Raíssa no período de doutorado sanduíche.
Dados da OMS mostram que a doença de Chagas se espalhou para diversas regiões do planeta, além da área tradicionalmente afetada na América Latina. A ausência de informações sobre a infecção em muitos países pode indicar subnotificação e impacto ainda maior do agravo. Arte: Jefferson Mendes
A importância de aplicar metodologias de ponta em busca de novas estratégias contra a doença de Chagas é ressaltada pelos cientistas.
“Os tratamentos atualmente disponíveis para o agravo são altamente tóxicos, o que torna a adesão à terapia difícil. O ideal é que sejam desenvolvidos novos tratamentos para a doença e, considerando a prevalência ainda alta da infecção em diversos países, uma estratégia preventiva, como uma vacina, também seria importante”, avalia Manuela, que também atua como professora do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade da UFRJ, mais conhecido como NUPEM.
Colaboração internacional
O estudo contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Brasil, e da Fundação Nacional de Ciência (NSF) e do Instituto Nacional de Saúde (NIH), dos Estados Unidos.
O período de doutorado sanduíche da biomédica Raíssa Rosa na Universidade de Auburn, onde os experimentos computacionais foram realizados, foi financiado pelo Programa Capes Print, a partir da concessão de bolsa, e prorrogado com apoio de recursos norte-americanos.
Manuela Leal da Silva, Raíssa Rosa e Rafael Bernardi na Universidade de Auburn, nos Estados Unidos. Foto: Auburn Physics
Os pesquisadores salientam a importância da colaboração internacional no projeto e na formação de jovens cientistas.
“Infecções negligenciadas não estão no foco das pesquisas nos Estados Unidos e foi muito produtivo combinar a nossa expertise em biofísica computacional com o conhecimento da Fiocruz, que é líder na pesquisa em doença de Chagas”, afirmou Rafael.
“Além da formação sólida e interdisciplinar, o Programa de Pós-graduação em Biologia Computacional e Sistemas me proporcionou acesso a redes de pesquisa nacionais e internacionais e oportunidades de intercâmbio e participação em projetos de ponta. Esse estudo mostra como grupos brasileiros estão se destacando na aplicação de modelagem computacional avançada para entender processos biológicos complexos. É uma área em crescimento e com grande potencial", ressalta Raíssa, que defendeu sua tese de doutorado em maio e atualmente participa de um programa de estágio de verão como pesquisadora associada no Centro de Biologia Computacional do Instituto Flatiron, em Nova York.
Cenário da doença de Chagas
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença de Chagas afeta mais de 7 milhões de pessoas no mundo, causando cerca de 10 mil mortes por ano. Aproximadamente 100 milhões de indivíduos vivem sob risco de contaminação.
A maioria dos casos se concentra na América Latina, onde são encontrados os insetos triatomíneos, popularmente conhecidos como barbeiros, que transmitem a infecção.
No entanto, o padrão do agravo mudou nas últimas décadas, principalmente devido à mobilidade das populações, urbanização e migração.
A doença de Chagas, que era majoritariamente rural e estava restrita à América Latina, hoje se caracteriza como predominantemente urbana e encontra-se disseminada pelo planeta, com número crescente de casos no Canadá, Estados Unidos e países europeus, africanos e asiáticos.
*Artigo:
ROSA, R. S. L.; DA SILVA, M.; BERNARDI, R. C. Atomistic Insights into gp82 Binding: A Microsecond, Million-Atom Exploration of Trypanosoma cruzi Host-Cell Invasion. Biochemistry, v. 64, n. 11, p. 2476–2488, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.1021/acs.biochem.4c00710 [3].
